Políticas de proximidade em saúde e territorialização das ações

(imagem: Stockphotos)

Desde as últimas décadas do século XX, várias políticas públicas em saúde foram criadas no Brasil com o objetivo de consolidar o Sistema Único de Saúde e, concomitantemente, promover uma melhor qualidade de vida para a população brasileira. Dentre os vários campos de ação dessas políticas como, por exemplo, o modelo de Atenção e Vigilância à Saúde, gostaríamos de abordar, por hora, aqueles que possuem uma maior relação de proximidade com o cotidiano das populações, que interagem com o dia-a-dia dos cidadãos e que se tornam, por isso mesmo, mais visíveis aos olhos dos diferentes sujeitos que são por eles enlaçados. Pensar políticas de proximidade é, antes de tudo, compreender o potencial de articulação entre os diversos atores envolvidos (profissionais, população, gestores) no processo de promoção da saúde.

O conceito de proximidade está relacionado com a escala de ação dessas políticas. Falamos de políticas de proximidade quando nos referimos àquelas que vão até os domicílios das pessoas, que se debruçam sobre o cotidiano das comunidades e diagnosticam a realidade da forma mais particularizada possível. São programas e ações cuja execução está baseada na prestação do serviço direto, na geração da informação instantânea e na capacidade de intervenção rápida. Nesse contexto, destacamos dois campos da saúde pública que têm um forte componente de proximidade na execução de suas ações. O primeiro é a Vigilância à Saúde, especialmente quando pensamos nas atividades de controle de endemias realizado por agentes de saúde espalhados no território. O segundo é a Atenção Básica, que objetiva, através da Estratégia de Saúde da Família, promover saúde na escala do cotidiano das pessoas, atuando de forma atrelada ao ritmo ordinário das suas vidas. Embora com lógicas e objetivos distintos, esses dois campos têm características comuns. Suas convergências podem ser observadas nos seguintes aspectos: a) possuem na figura do agente de saúde a base de suas ações; b) usam o território como categoria operacional de divisão do trabalho; c) interagem com as populações nas residências e no trabalho; d) têm o poder da informação refinada sobre a situação de saúde dos lugares e das pessoas. Os agentes de saúde (comunitários – ACS, ou de combate às endemias – ACE) percorrem o país inteiro com o objetivo de promover a saúde. Estão espalhados nos grandes centros urbanos e nas áreas rurais e pouco habitadas. Para muitas comunidades, esses atores são os únicos sujeitos públicos que chegam tão próximo delas. Essa particularidade dá aos agentes de saúde a capacidade de poder articular informações específicas para atuar sobre localidades tão particulares. Por isso, esses campos da saúde pública adotaram o território como categoria operacional básica para o processo de trabalho.

No entanto, ressalta-se que, no campo da saúde coletiva, na maioria das vezes, o território é compreendido apenas sob a égide da norma, ou seja, como mero palco onde as ações devem ser desenvolvidas. Quando, de fato, a categoria território deve ser usada na compreensão do espaço vivido das populações para subsidiar as intervenções propostas pelas políticas de saúde. Essa compreensão do território como espaço de significações é de suma importância para o sucesso das ações. O território quando visualizado apenas como palco, plano homogêneo, espaço físico, inerte diante das vivências e usos que dele se faz, empobrece todo tipo de análise e intervenção para a promoção da saúde.

A partir do momento que os agentes de saúde visitam os domicílios, conversam com as pessoas, relacionam-se com as comunidades, eles passam a entender as diferenças socioespaciais, os diferentes projetos políticos existentes na área e, a partir daí, podem traçar estratégias múltiplas de aproximação com moradores, comerciantes e transeuntes. Para Santos (2001), o território não é uma categoria funcional quando visto apenas como palco. Segundo o autor, a categoria que interessa é a de território usado, ou seja, o espaço delimitado por relações de poder onde os objetos e as ações estão constantemente modificando esse espaço. O território não é estático, abstrato, mera cartografia. O território é dinâmico, complexo e representa como a sociedade se relaciona com esses objetos naturais e artificiais animando o espaço.

Compreender esse processo é um dos principais desafios na operacionalização das políticas de proximidade em saúde. Utilizar o território apenas como categoria de divisão do processo de trabalho, através de mapeamentos, esquadrinhamento do espaço, definição de áreas de abrangência, é reduzir o potencial de análise do cotidiano das populações que é condição para pensarmos ações de promoção da saúde.

O território nas políticas de proximidade não pode ser visto apenas como um dado quantitativo, definido por um conjunto de imóveis, quadras ou bairros. Indo além, essas políticas devem buscar compreender o caráter qualitativo do território, que particulariza uma realidade construída pela relação entre a cultura e a natureza, entre o físico e o imaterial, entre a sociedade e o ambiente onde se vive. Nesse sentido, os atores que executam as políticas de proximidade têm o poder de interagir com as comunidades.

Tanto a Vigilância à Saúde quanto a Atenção Básica possuem táticas operacionais para visitar residências, pontos comerciais e espaços simbólicos para as populações no seu cotidiano. Esse poder deve ser potencializado, pois permite a construção de diagnósticos e prognósticos sobre situações de saúde que carecem de diferentes tipos de intervenção. Por isso, a informação produzida pelos agentes de campo é tão relevante para o planejamento de ações no curto e longo prazo. A informação produzida e conhecida representa poder. Saber o que acontece, onde e como acontece são desafios cada vez mais perseguidos por gestores e executores de políticas públicas de saúde. O dado gerado no campo, fruto de visitas domiciliares, deve ser transformado em informação visando o emponderamento dos diferentes atores (comunidades, agentes de campo, profissionais executores e gestores).

A população deve estar ciente da situação de saúde da cidade, do bairro, da rua, da casa, da família. A informação não pode interessar apenas aos planejadores. Ela deve ser difundida com intuito de envolver todos os atores no processo de promoção da saúde, a partir do princípio da corresponsabilidade. Esse movimento de diagnóstico, intervenção e produção de informação é o que denominamos territorialização das ações de saúde. A territorialização tem sido cada vez mais utilizada nas políticas de saúde, tanto em função dos aspectos normativos (divisão do processo de trabalho), quanto em função do entendimento do território enquanto categoria chave para entender a relação ambiente-saúde.

Nesse sentido, as políticas de proximidade se destacam por compreender a territorialização como um dos pilares operacionais de suas práticas. Para Gondim et al (2008), o processo de territorialização se configura como uma das bases operacionais dos sistemas de vigilância em saúde e atenção básica, visto que ela  “permite espacializar e analisar os principais elementos e relações existentes em uma população, os quais determinam em maior ou menor escala seu gradiente de qualidade de vida” (Gondim et al 2008, p.250). Observa-se que a autora não reduz o processo à descrição e/ou espacialização, mas avança naquilo que acreditamos ser outra premissa básica da territorizalição, que é a análise.

Numa pesquisa recente, Bezerra (2012) construiu em parceria com os atores da vigilância em saúde ambiental da Região Metropolitana do Recife um roteiro do que seria o processo de territorialização de políticas de proximidade, a partir da experiência de campo dos atores e das discussões produzidas no âmbito acadêmico. A territorialização requer, em primeiro lugar, o reconhecimento da área, chamado de diagnóstico. Por meio dessa etapa, é possível conhecer o espaço onde se irá atuar, mapeando os principais equipamentos urbanos e problemas socioambientais. O diagnóstico é uma etapa imprescindível para o agente conhecer o território de atuação, antes mesmo de realizar as intervenções. Após o diagnóstico, a segunda tarefa a ser realizada refere-se à divisão do território para o desenvolvimento das ações. Essa etapa, para ser bem realizada, depende da primeira, pois o conhecimento da área ajuda em um processo de divisão territorial, a partir das especificidades espaciais. Na prática o que acontece é a divisão de recortes territoriais de forma aleatória, baseada em uma soma de imóveis e agrupamento de quarteirões. Porém, tanto os agentes quanto os gestores sabem que esse espaço é dotado de complexidades e a divisão de atores de forma aleatória termina por não atender o princípio da equidade preconizado pelo SUS.

Neste sentido, somente pensar a divisão do território em agrupamento de quarteirões ou o estabelecimento de áreas de abrangência para atuação de agentes de saúde não corresponde à territorialização, na forma como defendemos aqui. A terceira fase se caracteriza pela implementação dos territórios individuais, uma etapa que requer a discussão entre os atores sobre quais recortes serão de responsabilidade de cada agente pois, a partir daí, inicia-se o processo de apropriação territorial, no qual o agente de saúde buscará se articular com vários atores sociais presentes no seu território.

Nesse momento, ele apresenta sua proposta de trabalho e articula o apoio da comunidade para o desenvolvimento das ações de vigilância e atenção básica. As parcerias são muito importantes para consolidar o processo de territorialização de uma área, pois a participação de diversos atores no início do processo traduz o cuidado em ouvir o outro e entender a dinâmica social do seu local de trabalho. O quarto passo se refere às ações desenvolvidas no território. Talvez seja esta a fase mais frequente na rotina de trabalho dos atores de campo, pois as ações acontecem independentemente da realização dos procedimentos anteriores. Entretanto, o desenvolvimento dessas ações, quando realizado com base em um processo de territorialização, tende a ter mais sucesso e efetividade, uma vez que o conhecimento da área e o estabelecimento de parcerias transmitem maior confiança à população sobre o papel do agente de saúde no território.

A quinta etapa se dá simultaneamente com a quarta, pois se trata da coleta de dados e avaliação. A coleta viabiliza a alimentação dos bancos de dados do setor saúde que permite em diferentes escalas temporais e espaciais a descrição da situação da saúde ambiental em determinado contexto. Tão importante quanto a consolidação dos dados é a construção das informações que darão suporte à avaliação e tomada de decisão por parte das equipes operacionais e da própria gestão. Porém, a geração de informações baseadas nos dados e a própria avaliação são etapas nem sempre respeitadas, especialmente no âmbito operacional.

A última etapa pode ser caracterizada pelo feedback, tanto entre a esfera gerencial e a operativa, quanto entre a esfera operativa e as populações assistidas. A partir do momento em que a população está disposta a contribuir com as ações de promoção, ela tem o direito de saber sobre a situação de saúde da comunidade. O trabalho do ACE não se resume à prática de monitorar o ambiente, intervindo por meio de técnicas de tratamento ambiental e educação, mas também compete informar às pessoas presentes nos imóveis visitados a situação de saúde, com base nas informações coletadas nas visitas rotineiras e observações do contexto. Essa estratégia aproxima a população da vigilância, uma vez que convida para dentro do processo as pessoas que geralmente não participam diretamente das ações. Além disso, confere um caráter de corresponsabilidade no âmbito de saúde naquele território.

Um dos maiores desafios postos à execução dessas etapas está na necessidade da participação efetiva dos diferentes atores. As fases, mesmo que ocorram de forma simultânea, carecem de avaliação própria, e não é apenas o agente de saúde individualmente que deve realizar essa avaliação, mas sim todos os envolvidos no processo de territorialização.  O viés participativo é fundamental para o sucesso das ações no território e a tomada de decisões baseadas em um entendimento coletivo das situações de saúde. Assim, as políticas de proximidade debatidas neste texto necessitam cada vez mais aperfeiçoar suas práticas de territorialização, pois visualizamos esse processo como a base para o entendimento dos diferentes contextos de saúde nos quais as comunidades estão inseridas.

Referências Bibliográficas

Barcellos C, Rojas LI. O território e a vigilância em saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/EPSJV/PROFORMAR; 2004.

Bezerra ACV. A consolidação das ações de campo da vigilância ambiental em saúde: heranças e desafios a territorialização [tese de doutorado]. Recife: Universidade Federal de Pernambuco – UFPE; 2012. [acesso em 21 jul 2013]. Disponível em: http://www.ufpe.br/posgeografia/images/anselmocesartese.pdf

Gondim GMM, Monken M, Rojas LI, Barcellos C, Peiter P, Navarro M, Gracie R. O território da Saúde: a organização do sistema de saúde e a territorialização. In: Miranda AC, Barcellos C, Moreira JC, Monken M, organizadores. Território, Ambiente e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. p. 23-42.

Monken M. Contexto, território, e processo de territorialização de informações: desenvolvendo estratégias pedagógicas para a educação profissional em saúde. In: Barcellos C. organizador. A geografia e o contexto dos problemas de saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2008. p. 141-164.

Pereira MPB. Conhecimento geográfico do agente de saúde: competências e práticas sociais de promoção e vigilância à saúde na cidade do Recife – PE [tese de doutorado]. Presidente Prudente: Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia; 2008. [acesso em 21 jul 2013]. Disponível em: http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/bpp/33004129042P3/2008/pereira_mpb_dr_prud.pdf

Santos M, Silveira ML. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Record; 2001.

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