Em matérias anteriores discutimos o processo de elaboração da Agenda de Desenvolvimento pós-2015, que inclui os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, destacando a definição dos objetivos de saúde no âmbito desta agenda. Na primeira dessas matérias mencionamos que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) foram estabelecidos no ano 2000 com data limite para seu alcance em 2015 e que já estava em pleno andamento o processo de elaboração da agenda pós-2015 liderado por um Painel de Alto Nível de Pessoas Eminentes nomeado pelo Secretário Geral da ONU. O Brasil está representado neste Painel pela Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira. Estava previsto que o Painel apresentaria seu relatório ao Secretário Geral no segundo quadrimestre de 2013, o que de fato ocorreu em 30 de maio deste ano. Este relatório, que deve ser submetido à próxima Conferência Anual das Nações Unidas em setembro de 2013, é o tema de discussão da presente matéria.
Vale recordar como foi o processo para a elaboração da agenda pós-2015, objeto do relatório do Painel de Alto Nível. Foram organizadas várias reuniões de consulta em cerca de 100 países de renda média e baixa, seis consultas regionais e 11 consultas temáticas globais. No caso da consulta para a Saúde o processo foi liderado pela OMS e UNICEF em colaboração com os governos da Suécia e Botswana. Os objetivos dessa consulta temática sobre Saúde foram: avaliar os avanços e as lições aprendidas com os ODM relacionados com saúde, discutir o posicionamento da saúde no marco de referência para a agenda pós-2015 e propor objetivos e metas de saúde para a agenda de desenvolvimento pós-2015, incluindo recomendações para sua implementação, medida e monitoramento. Esse processo de consulta ocorreu de setembro de 2012 a janeiro de 2013, tendo recebido mais de 100 artigos, documentos e relatórios de reuniões sobre o tema em consulta. Em fevereiro 2013 foi elaborado um relatório denominado Report of the Global Thematic Consultation on Health que resume e organiza essas contribuições (acessível em http://www.worldwewant2015.org/health).
Na segunda matéria sobre este tema nos referimos a uma importante contribuição da Associação Epidemiológica Internacional (AIE) à Consulta Temática Global sobre Saúde contribuição essa assinada por Cesar Victora e outros. Neste documento os autores analisam o cumprimento dos objetivos de desenvolvimento do milênio (ODM) e sugerem indicadores de saúde para a agenda pós-2015, entre os quais a expectativa de vida ao nascer e a expectativa de vida aos 40 anos.
Finalmente, nesta retrospectiva de nossa série sobre a agenda de desenvolvimento pós-2015, na terceira matéria sobre o tema mencionamos que a definição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que fazem parte desta agenda para as 11 áreas selecionadas, entre elas Saúde, envolveu um amplo processo de consulta pública. No caso da Saúde, a consulta pela internet atraiu 150.000 visitantes, 1.569 pessoas participaram de 13 encontros presenciais na África, Ásia, América Latina e Europa e mais de 100 trabalhos foram apresentados. O relatório sobre este processo de consulta serviu como documento de trabalho do Diálogo de Alto Nível sobre Saúde na Agenda de Desenvolvimento pós-2015 que teve lugar em Gaberone, Botswana de 4 a 6 de Março de 2013.
O Diálogo foi organizado pelo Governo do Botswana, e reuniu 50 participantes, incluindo ministros da Saúde, membros do Painel de Alto Nível de Pessoas Eminentes (ou seus representantes), líderes de instituições internacionais, representantes da sociedade civil, do setor privado, acadêmicos e especialistas em saúde pública. Esta reunião de Botswana marcou o término do processo de consulta para a saúde e suas propostas e recomendações foram enviadas ao Painel de Alto Nível.
Ao comentar o relatório da reunião de Botswana, reconhecíamos inegáveis avanços, como por exemplo, a menção explicita sobre a necessidade do combate às iniquidades em saúde por meio da ação sobre os DSS. Entretanto, criticamos a formulação do objetivo síntese da saúde proposto, “Maximizar a Saúde em Todas as fases da Vida”, por não cumprir com os princípios orientadores para definição de objetivos expostos no próprio relatório da reunião. De fato, neste relatório se indica que os objetivos da agenda pós-2015 devem ser “mensuráveis, definidos no tempo e alcançáveis”. Os ODM atendiam a esses princípios e, mesmo assim, o cumprimento dos objetivos relacionados com mortalidade materna mostrou-se de difícil avaliação pela ausência de dados. Tal dificuldade nos parecia ainda maior no caso de “Maximizar a Saúde em Todas as Fases da Vida” não apenas pela ausência de dados, como pela formulação pouco concreta e ambígua deste objetivo. Entretanto, consideramos o debate sobre estes diversos objetivos síntese da saúde como bastante oportuno e enriquecedor.
Com todo este rico processo de discussão criou-se grande expectativa para o relatório do Painel de Alto Nível. Infelizmente o relatório não correspondeu a esta expectativa, pois consideramos que o mesmo não está à altura do avanço conceitual e operacional relacionado ao desenvolvimento sustentável e aos DSS, obtido não apenas durante o processo de discussão da agenda, como nas discussões e conclusões das Conferências Mundial sobre DSS e a Rio+20.
Em lugar de priorizar a definição de objetivos e metas concretas, mensuráveis, facilitando a avaliação e cobrança de responsabilidades, o relatório enfatiza o que chama “cinco grandes mudanças para transformação” (five big transformative shifts). As mudanças propostas, sem dúvida se orientam a fortalecer os principais pilares do desenvolvimento sustentável, embora sejam formuladas de maneira bastante genérica, sem uma clara definição de objetivos e metas a alcançar. São elas: Não deixar ninguém para trás (leave no one behind), colocar o desenvolvimento sustentável no centro da agenda (put sustainable development at the core), transformar as economias para criar emprego e crescimento inclusivo (transform economies for jobs and inclusive growth), construir paz e instituições efetivas, abertas e responsáveis para todos (build peace and effective, open and accountable institutions for all) e forjar uma nova aliança global (forge a new global partnership).
O relatório inclui uma lista de questões ditas transversais que não são diretamente abordadas através de um único objetivo, mas tratadas em vários deles. São elas a paz, as desigualdades, a mudança climática, as cidades, os jovens, meninas e mulheres e os padrões sustentáveis de produção e consumo. No caso das desigualdades (o relatório não faz referência ao conceito de iniquidades), embora haja uma frase que indica que as metas somente serão consideradas alcançadas se cumprem para todos os grupos sociais e de renda relevantes (?), há uma grande ênfase em ações de combate à pobreza e atenção a grupos vulneráveis. Como sabemos, o combate à pobreza pode eventualmente contribuir para a diminuição das desigualdades, mas ao não contemplar ações específicas para diminuir as diferenças entre os diversos grupos sociais é também possível que estas diferenças aumentem ao mesmo tempo em que a pobreza declina. Tampouco há uma discussão sobre aspectos conceituais e operacionais que distinguem políticas universais (combate à desigualdade) e políticas focais (combate à pobreza).
Conforme já mencionamos, os objetivos e metas para as 11 áreas selecionadas ocupam um papel secundário no relatório e são incluídos a título de sugestão no anexo 1. Com relação aos objetivos e metas de saúde, durante o processo de consulta pública surgiram, como vimos, propostas bastante criativas que buscam aproveitar os elementos positivos dos ODMs e superar suas limitações. Entretanto, o relatório do Painel de Alto Nível não recolhe essas propostas e praticamente se limitam em grande medida a repetir os ODMs.
O objetivo de Saúde no relatório do Painel de Alto Nível é o objetivo 4 denominado Garantir Vidas Saudáveis. Este objetivo bastante amplo foi reduzido a metas que a nosso ver não dão conta da abrangência do mesmo. Além disso, as metas são definidas em termos de médias, sem menção à diminuição de diferenças entre grupos sociais, como seria adequado a um enfoque que leve em conta os DSS. São elas (tradução do inglês):
Para efeito de comparação, os atuais ODMs contemplam três objetivos de saúde:
Como se pode observar, há uma grande semelhança entre os objetivos de saúde dos ODMs e os objetivos de saúde propostos para a agenda pós-2015. Sem dúvida, há uma agenda inconclusa no que se refere ao cumprimento dos ODMs que deve ser contemplada nos objetivos da agenda pós-2015. Entretanto, além dos objetivos não alcançados, a expectativa era a da inclusão de novos objetivos e metas que para seu alcance obrigassem à ação sobre os determinantes sociais da saúde.
Esperamos que este relatório seja devidamente analisado e aperfeiçoado durante a Assembleia Geral da ONU em setembro próximo para que tenhamos uma agenda de desenvolvimento pós-2015 que realmente oriente os esforços dos países e da comunidade internacional para um modelo de desenvolvimento mais justo e inclusivo.
Referências Bibliográficas
A New Global Partnership: Eradicate Poverty and Transform Economies Through Sustainable Development. New York: United Nations; 2013.
Victora CG, Buffler P, Ebrahim S, Mandil A, Olsen J, Pearce N, Saracci R. A position paper by the International Epidemiological Association. 2012.
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